Curtailment e os desafios da transição energética no Brasil
- Milton Wells
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Por Julien Dias (*)

O avanço das fontes renováveis no Brasil trouxe consigo um novo desafio técnico e regulatório: o curtailment, ou redução forçada da geração de energia por limitações operativas do sistema elétrico.
O termo, já amplamente discutido em mercados maduros, começa a ganhar relevância no país, especialmente com a crescente participação de usinas solares e eólicas em regiões cuja infraestrutura de transmissão não se expandiu no mesmo ritmo da geração.
A Resolução Normativa ANEEL nº 1.030/2022 disciplinou o tema ao definir os três tipos de cortes aplicáveis: por indisponibilidade externa (REL), por confiabilidade elétrica (CNF) e por razão energética (ENE). Embora o arcabouço regulatório brasileiro tenha evoluído, o mercado ainda carece de instrumentos claros para alocação de riscos, compensação financeira e planejamento conjunto de geração e rede. Na prática, o curtailment já representa uma fonte potencial de litígios e incertezas para investidores e operadores.
Durante minha experiência na Austrália, entre 2016 e 2017, pude observar de perto esse mesmo processo de transição. O país vivia o auge da substituição de térmicas a carvão por projetos eólicos e solares. No sul da Austrália, a combinação de ventos fortes e dias ensolarados gerava picos de produção superiores à capacidade de escoamento da rede, provocando quedas de tensão e, em alguns casos, blecautes localizados.
Recordo que, no primeiro dia após minha chegada, um apagão de várias horas evidenciou a fragilidade de um sistema em transição. A resposta institucional foi imediata: a ARENA, agência equivalente à Aneel, promoveu estudos, incentivou a instalação de baterias de grande porte e criou programas de serviços ancilares para garantir estabilidade.
O resultado foi emblemático — a rede australiana passou a operar com maior flexibilidade, e o curtailment, embora ainda presente, transformou-se em indicador de eficiência e de oportunidades de investimento.
Experiências semelhantes se repetem em outros países. Na Califórnia, o operador CAISO reportou em 2024 mais de 3,4 TWh de energia solar e eólica cortada, 93% provenientes de solar. A expansão acelerada de sistemas de armazenamento no ano seguinte reduziu significativamente os cortes e melhorou o balanço de carga em horários críticos.
No Reino Unido, o excesso de geração eólica na Escócia levou ao desligamento remunerado de até 37% da produção em 2025, gerando custos expressivos e reabrindo o debate sobre precificação zonal e reforços estruturais de rede.
A Alemanha publica regularmente os custos de redispatch como indicador de congestionamento, e na Espanha, estudos apontam que a instalação de 200 Wh de baterias por kW solar pode recuperar até 80% da energia curta.
Esses exemplos revelam um denominador comum: o curtailment não é um sintoma de fracasso da transição energética, mas um sinal de maturidade dos sistemas elétricos baseados em renováveis.
Países que enfrentaram o problema de forma proativa criaram mercados de flexibilidade, remuneraram a estabilidade da rede e desenvolveram instrumentos regulatórios capazes de equilibrar eficiência, segurança e retorno financeiro.
O Brasil, ao contrário, ainda se encontra em uma fase inicial, com expansão renovável acelerada e infraestrutura de transmissão insuficiente, o que tende a gerar distorções e desincentivos.
O desafio brasileiro está em transformar esse risco em oportunidade. Assim como ocorreu na Austrália, o curtailment pode ser o gatilho para um novo ciclo de investimentos — em transmissão, armazenamento, modernização de sistemas de controle e desenvolvimento de mercados de resposta da demanda.
Para isso, será essencial avançar em cinco eixos: planejamento integrado entre geração e rede; criação de um programa nacional de baterias e serviços ancilares; adoção de tarifas dinâmicas e sinais locacionais; revisão dos contratos de leilão para redistribuir riscos; e definição de mecanismos de compensação proporcionais às causas dos cortes (REL, CNF ou ENE).
Em vez de punir o gerador ou o investidor, é preciso enxergar o fenômeno como parte do aprendizado natural da transição energética. Nos mercados desenvolvidos, a energia 'curtida' deixou de ser desperdiçada e passou a ser armazenada, negociada ou utilizada para serviços de flexibilidade.
No Brasil, o mesmo poderá ocorrer — desde que as regras e os incentivos evoluam na mesma velocidade que a tecnologia. Em última análise, o curtailment será inevitável, mas sua consequência econômica e social dependerá da qualidade do planejamento e da agilidade regulatória.
Países que compreenderam isso transformaram um problema operacional em um vetor de inovação. O Brasil tem a chance de fazer o mesmo — aprender com os erros do primeiro mundo e aplicar, com inteligência, as soluções que já se provaram eficazes.
(*) Diretor da Economiznenergia
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